segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

A EXPLORAÇÃO DO RIO DA PRATA E O CAMINHO DO PEABIRU


PEABIRU - A versão mais popular dá conta que os peabiru (na língua tupi, "pe" – caminho; "abiru" - gramado amassado) são antigos caminhos utilizados pelos indígenas sul-americanos desde muito antes do descobrimento pelos europeus, ligando o litoral ao interior do continente. A designação Caminho do Peabiru foi empregada pela primeira vez pelo jesuíta Pedro Lozano em sua obra "História da Conquista do Paraguai, Rio da Prata e Tucumán", no início do século XVIII.

1514. Aqui começa a história do descobrimento do Rio da Prata pelos europeus, quando os portugueses mandaram uma expedição para procurar uma possível passagem navegável através do continente americano, na tentativa de encontrar um misterioso oceano recém descoberto pelos espanhóis no ano anterior, ao cruzarem montanhas e selvas do Panamá no sentido leste-oeste.
Não parece ter sido fácil a missão confiada a Estevão Fróis e João de Lisboa, capitães das duas caravelas que partiram de Portugal em fevereiro, rumo ao Brasil, chegando à Cananeia, descoberta em 1502 por Gonçalo Coelho, e ponto extremo sul das navegações portuguesas até àquele momento. Dali prosseguiram em direção ao sul, passando pela Ilha de São Francisco do Sul, descoberta dez anos antes pelo navegador francês Binot Paulmier de Gonneville. Ninguém havia ultrapassado essa latitude em direção ao sul, ou seja, daí para frente todo o território era desconhecido.
Fig. 1 - nau portuguesa do século XVI

Mais além – localizemo-nos geograficamente: de Laguna até Punta del Este -, os navegadores se depararam com cerca de 900 Km de costas baixas, arenosas e retilíneas, sem portos naturais que permitissem ancoradouro para suas embarcações. Encontraram, em julho, na altura do paralelo 35, uma grande abertura em direção ao interior do continente, viraram à estibordo e penetraram no estuário, navegando por cerca de 50 léguas – a “légua” utilizada em Portugal à época das grandes navegações equivalia a 6,179 Km – até serem detidos pelo mau tempo, próximos ao local onde, hoje, fica Buenos Aires.
Desembarcaram. Ali encontraram índios que, em função das baixas temperaturas, se cobriam com peles de animais viradas ao avesso, amarradas com cintas de um palmo de largura. E contaram-lhes os índios, no decorrer das interações que se seguiram, sobre as “grandes montanhas onde a neve nunca desaparece” e sobre “um povo serrano que possui muitíssimo ouro batido, usado à moda de armadura, na frente e ao peito”. Acreditaram nas narrativas dos índios por conta de um machado de prata que esses lhes mostraram e, depois, lhes venderam. Levado para Portugal, o machado foi entregue ao rei Dom Manuel, o venturoso, - Alcochete, 31/05/1469; Lisboa, 13/12/1521 - e serviu como prova da existência das riquezas um pouco além da região recém descoberta.

Transmitidas de boca em boca, a partir das revelações de João de Lisboa, quando este desembarcou na Ilha da Madeira, em sua viagem de volta a Portugal, essas notícias foram transcritas por um comerciante europeu, quiçá, Cristóvão de Haro, de origem flamenga - que ajudou a financiar a viagem de Estevão Fróis e João de Lisboa - e transformadas em um folheto denominado Newen Zeytung aus Presilg Landt – traduzindo para o português: A Nova Gazeta da Terra do Brasil - que depois foi reproduzido e, em alguns meios, divulgado. Há controvérsias sobre o conteúdo das informações relacionadas à descoberta que chegaram à Espanha, cujo rei, Dom Fernando II, el católico, - Sos, 10/03/1452; Madrigalejo, 23/01/1516 - concluindo que o território alcançado pelos portugueses ficava além das 370 léguas – algo em torno de 1780 Km - a Oeste das ilhas de Cabo Verde, estabelecidas pelo Tratado de Tordesilhas, destacou o navegador Juan Díaz de Solís para explorar a região.
Fig. 2 - mapa da América do Sul

Com duas caravelas, setenta tripulantes e mantimentos para dois anos e meio a expedição de Juan Díaz de Solís partiu do porto de Lepe em 8 de outubro de 1515, em uma jornada que durou três meses. Quando chegaram ao imenso estuário, foram costeando a margem de estibordo, e conta o cronista Antônio de Herrera que descobriram “montanhas e outros grandes penhascos, vendo gente nas ribeiras...”. Em um escaler, acompanhado por nove dos seus homens, Juan Díaz de Solís desembarcou com o objetivo de verificar quem eram aqueles nativos e para levar, quem sabe, um deles para Castela. Não foi uma boa ideia. Segundo Herrera, quando viram os castellanos longe do seu barco, os índios [possivelmente da etnia Chaná] os cercaram, mataram e devoraram. Salvou-se [ou foi poupado] um jovem grumete de 13 anos. Em atitude de prudência, os homens de Juan Díaz de Solís, que fora um dos mortos pelos índios, resolveram voltar à Espanha.
Enquanto isso, em Portugal, o rei Dom Manuel, alertado sobre as manobras do monarca espanhol, encaminhou providências para firmar sua posse nos territórios que cabiam a Portugal por conta do tratado assinado em 1494, determinando ao fidalgo Cristóvão Jacques que, de pronto, organizasse uma expedição à Terra do Brasil – denominação utilizada de 1505 a 1526 - também com a finalidade de chefiar a organização do comércio do pau-brasil. Assim, [acredita-se que] em agosto de 1516, trezentos tripulantes distribuídos em duas ou três caravelas – há controvérsias sobre o número de caravelas – fizeram parte do efetivo que culminou com a chegada dos primeiros colonos ao Brasil, muitos dos quais se limitaram a interagir com os nativos, adotando seus costumes e vivendo em poligamia com três ou quatro índias, cada.
Seis anos se passaram desde a malograda aventura de Solís, até que os ibéricos voltassem a manifestar interesse em se aventurar com afinco naquela transição entre o rio e o mar, situada a mais de 145 léguas ao sul do último ponto da linha de Tordesilhas. Antes, em janeiro de 1520, a expedição de Fernão de Magalhães por ali esteve, explorando a região por cerca de um mês. Tendo enviado uma de suas naus para o interior da embocadura, e tendo essa retornado, quinze dias depois, com a notícia de que não existia uma passagem para mar aberto, e que o rio recebia muitos afluentes, decidiu prosseguir em direção ao sul, em busca da suposta passagem que acreditava existir na altura do paralelo 40.
Em novembro de 1521 foi a vez de Cristóvão Jacques, que houvera retornado a Portugal em 1519, após a fundação e consolidação da feitoria [da ilha] de Itamaracá, a partir da qual passou a explorar e enviar pau-brasil para Portugal. Ele zarpou de Lisboa no comando de 60 homens, distribuídos em duas caravelas, com o objetivo de explorar o até então chamado [pelos espanhóis] Mar Dulce ou Rio de Solís, descoberto em 1514 por Estevão Fróis e João de Lisboa. Guiado pelo português Melchior Ramires, um náufrago da expedição de Solís, que vivia [com os índios Guarani] já há cinco anos no Porto dos Patos – atual Passo do Macabu, em Palhoça, SC – Jacques dobrou o Cabo de Santa Maria, no paralelo 35 S, e enveredou por cerca de 45 ou 46 léguas até a ilha hoje conhecida como Isla San Gabriel, bem em frente à atual Colonia del Sacramento, ROU. Encontrou no local, vivendo entre os índios Charrua, o ex-aprendiz Francisco del Puerto, o sobrevivente da infeliz comitiva de Juan Díaz de Solís. Esse confirmou todas as histórias contadas a outros navegadores, relacionadas à existência de uma montanha formada ou recheada de prata, em território controlado por um poderoso rei branco, protegido por um exército treinado e bem armado.
Tendo ancorado as caravelas em San Gabriel, Cristóvão Jacques, e tantos quantos couberam em dois bateis, percorreu o rio Paraná em busca de mais pistas relacionadas aos propalados tesouros que poderiam haver mais além. Vinte e três léguas rio acima encontrou outros índios que exibiram e lhe deram pedaços de prata e de cobre, além de algumas pedras com veios de ouro. Informaram-lhe, porém, que a montanha de prata, bem como o território do tal rei branco, ficavam 300 léguas adiante, onde as montanhas eram cobertas de neve. Conformou-se Jacques com a impossibilidade de cobrir tamanha distância, contra a corrente e embrenhando-se cada vez mais para o interior daquela terra incerta. Retornou com seus homens às caravelas e rumou para Portugal em abril de 1522, com a ideia fixa de organizar uma nova expedição à região da Sierra del Plata ou ao Rio de La Plata – denominações utilizadas pelos náufragos da expedição de Solís que o acompanharam. Quatro meses antes, no entanto, falecera o rei D. Manuel, e ao chegar a Lisboa, Cristóvão Jacques não mais obteve apoio para dar sequência ao projeto de exploração no além-mar, até a distante região do Prata. Seu inconformismo [com o rei de Portugal, D. João III] o fez bandear-se para o lado dos espanhóis.
Fig. 3 - estuário do Rio de la Plata

Voltemos a 1516 e ao retorno das duas caravelas da expedição de Juan Díaz de Solís à Espanha. Enquanto a caravela comandada por Francisco Torres chegava à feitoria portuguesa localizada na Baía dos Inocentes - atual Baía de Guanabara –, a outra caravela que passava por dificuldades na altura do paralelo 27, naufragava na tentativa de entrar na baía sul de Meiembipe – atual Ilha de Santa Catarina. Os sobreviventes – especula-se que foram onze – juntaram-se a índios Carijó e passaram a viver naquela ilha, transferindo-se depois para o continente, ao local conhecido como Porto dos Patos – hoje, conhecido como Baixada ou Baixio do Maciambu, em Palhoça, SC.
Assim, segundo BUENO (2016, p. 128), “em novembro de 1521, ali viviam nove europeus, cada um deles em companhia de três ou quatro nativas. Todos tinham seus próprios escravos e mantinham boas relações com os chefes locais”. Um desses europeus era Aleixo Garcia que com o tempo de convivência adquiriu a confiança dos índios Carijó ou Guarany, os quais a ele revelaram a existência de um caminho sagrado, através do qual podiam acompanhar a trajetória do Kuarahy – Sol, na língua dos indígenas – em seu “deslocamento” diário de leste a oeste. Nessas andanças obtinham, em seus contatos e trocas com nativos oriundos de outras regiões localizadas mais a oeste, objetos de ouro, prata e estanho. 
Em 1971, a Universidade Federal do Paraná revelou pesquisas coordenadas pelo arqueólogo Igor Chmyz que descobriu vestígios de, aproximadamente, 30 Km de um antigo caminho, batizado [no século XVIII] pelo jesuíta Pedro Lozano, de O Caminho do Peabiru. Esse caminho era recoberto por uma gramínea conhecida como puxa-tripa, semeada pelos índios para impedir o crescimento de árvores e ervas invasoras, e tinha um desnível de uns 40 cm em relação ao nível do solo. Era pavimentado nos trechos mais difíceis e tinha cerca de 1,40 m ou 1,60 m – há controvérsias - de largura, perfazendo algo em torno de 3.000 Km ou 4.000 Km – também há controvérsias – e constituindo uma ligação entre os Andes e o Atlântico. Passava pelo Peru, Paraguay, Bolivia e Brasil, com ramificações em direção ao Atlântico, já em território brasileiro. Uma dessas ramificações iniciava perto da atual cidade de Ponta Grossa, PR e apontava para nordeste até a próxima ramificação, distante, cerca de 100 Km. Daí, um caminho ia em direção ao litoral na altura de onde [hoje] fica São Vicente, e outro continuava na direção do paralelo 25, até chegar no litoral, em Maratayama – chamada, a partir de 1531, de Cananeia. Outro trecho, considerado a partir do primeiro ponto supracitado, derivava para sudeste até o litoral, chegando em Meiembipe. Foi dali, mais precisamente, do Porto dos Patos, que partiu Aleixo Garcia, em 1524, acompanhado por uma impressionante quantidade de indígenas [da tribo] Carijó – em torno de dois mil – rumo às riquezas que ele imaginava ter, por ver os escambos de metais preciosos dos índios e por ouvir falar, desde há muito tempo, sobre o tal poderoso rei branco das montanhas “onde a neve nunca desaparece”, e sobre o ouro batido que recobria a armadura dos nativos daquela região serrana (BUENO, 2016, p. 107).
Viajando cerca de 2.600 Km a pé e de canoa, explorando a malha de trilhas indígenas que ligava o litoral da Terra do Brasil ao rio Paraguay, desbravando matas e pântanos e enfrentando índios hostis, Aleixo Garcia conseguiu chegar, em 1525, até [onde hoje fica] Cochabamba, na Bolivia, a cerca de 150 Km da mina de prata de Potosí, descobrindo, em seguida, o império do rei inca Huayna Capac – o “rei branco” que nem tão branco era. Em luta contra tribos que viviam sob o domínio ou influência desse rei, conseguiu roubar arrecadar algumas taças de prata, peitorais de ouro e peças de estanho, dando assim por concluído seu objetivo inicial, tratando de retirar-se em direção ao local de onde partira. Todavia, ao chegar à margem do rio Paraguay, o comandante e seus guerreiros foram atacados pelos índios Payaguá, sofrendo centenas de baixas. Aleixo Garcia estava morto. Quem sobreviveu, dentre os europeus, tratou de confirmar – apresentando as provas em forma de objetos de ouro, prata e estanho - os relatos indígenas [feitos, onze anos antes, a Estevão Fróis e João de Lisboa] sobre a existência de ouro e prata nos arredores das grandes montanhas.
Fig. 4 - trecho do Caminho do Peabiru no sul do Brasil

E assim espalharam-se, e chegaram aos ouvidos dos reis ibéricos, as notícias relacionadas aos tesouros encontrados nas entranhas daquelas terras [do além-mar] quase inexploradas, obrigando incentivando portugueses e espanhóis a organizarem sucessivas expedições para dar sequência à colonização dos rios da Prata, Paraná e Paraguay, e para ocupar o litoral sul do Brasil.
Fontes:
BUENO, Eduardo. Náufragos, Traficantes e Degredados - As Primeiras Expedições do Brasil. Estação Brasil. Rio de Janeiro, 2016.
GAY, Cônego João Pedro. História da República Jesuítica do Paraguay desde o Descobrimento do Rio da Prata até nossos Dias, anno de 1861. Typ. de Domingos Luiz dos Santos. Rio de Janeiro, 1863.
PRIMO, Armando Teixeira. América - Conquista e Colonização. Movimento. Porto Alegre, 2004.
http://www.monarquiaespanola.es/. Acesso em: 09/12/2018.








 







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